DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

quinta-feira, 19 de outubro de 2017



O HOMEM QUE PRETENDIA 

MESMO MORRER


Alexander Valterovich Litvinenko falava demais para um agente secreto. Avaliou mal o equilíbrio de poderes na própria terra e apostou no cavalo errado. Os erros pagam-se. Alguns custam caro.
Teve uma vida curta, mas agitada. Nasceu em Voronezh, na Rússia, em 1962 e morreu em Londres a 23 de novembro de 2006.
Durante um ano, serviu como soldado raso nas tropas do Ministério do Interior russo. Em 1986 tornou-se informador da KGB. Dois anos mais tarde, após frequentar um curso na Escola Militar de Contra Inteligência, em Novosibirsk, foi admitido como oficial operacional da KGB.

                     Gorbachev e Ieltsin

No ano de 1991, Vladimir Kriuchkov, líder da KGB, organizou um golpe de estado para depor o presidente Mikhail Gorbachev e foi vencido. Não podendo confiar na organização de espionagem, Gorbachev fez o que é costume nestes casos: dividiu para poder continuar a reinar. A agência secreta russa foi cindida em duas partes: o Serviço Federal de Segurança da Federação Russa (FSB), vocacionado para a segurança interna, e o Serviço de Informação Estrangeira (SVR) dedicado à espionagem. Litvinenko mudou-se para a secção do FSB encarregada de combater o crime organizado. Foi nesta área que fez toda a sua carreira, nunca tendo sido propriamente um espião. Conheceu Boris Berezovsky ao investigar uma tentativa de assassinato ao magnata russo. Passou a trabalhar também para ele, encarregando-se da sua segurança. O segundo emprego era ilegal mas as autoridades russas fechavam os olhos a essas situações, com que os seus funcionários, mal pagos, completavam os salários.
Em 1997, Alexander Litvinenko foi promovido e ascendeu ao Diretorado de Análise e Supressão dos Grupos Criminais da FSB. Havia quem considerasse essa instituição mais integrada no crime organizado do que esforçada em combatê-lo. Segundo a esposa Marina, terá descoberto numerosas ligações entre as autoridades policiais e grupos mafiosos russos.

                           Berezovsky

A 13 de novembro de 1998, Boris Berezovsky publicou no jornal diário Kommersant (O Empresário) uma carta aberta dirigida a Putin. Acusava alguns altos dirigentes do Diretorado de terem ordenado a sua morte e indicava os seus nomes.
Quatro dias depois, numa conferência de imprensa, Litvinenko e quatro outros oficiais da FSB confirmaram a acusação de Berezovsky. Todos os quatro trabalhavam simultaneamente para o FSB e para o oligarca russo. Acrescentaram outra informação do mesmo teor. Tinham recebido ordens para liquidar Mikhail Trepashkin.


Litvinenko foi demitido da FSB. A seguir foi preso, libertado, novamente detido e outra vez solto. Fugiu para a Turquia e conseguiu, depois, asilo político em Londres, onde trabalhou como jornalista e escritor. Tornou-se ainda consultor (pago) dos serviços secretos britânicos. Em 2006 adquiriu a nacionalidade inglesa.
Em Londres, Alexander Litvinenko escreveu e publicou dois livros em que acusava os serviços secretos russos de estarem por trás da série de explosões que, em setembro de 1999, atingiram vários blocos de apartamentos e mataram quase três centenas de pessoas, em Moscovo e noutras cidades russas. A intenção dos bombistas seria preparar a opinião pública russa para o desencadeamento da segunda guerra da Chechénia e a para a ascensão política de Vladimir Putin. Litvinenko acusou também Putin de ter mandado matar Anna Politkovskaya. Na obra O Gang de Lubyanka, Litvinenko afirmou que Putin estivera pessoalmente envolvido na proteção ao tráfico da droga proveniente do Afganistão. Em dezembro de 2003, as autoridades russas apreenderam 4.000 exemplares desse livro.
Litvinenko conhecia bem a criminalidade organizada russa e o funcionamento da FSB. Possuía também uma excelente imaginação.
Segundo ele, os serviços secretos russos estariam atrás de quase todas as tragédias que abalaram a Rússia e os países vizinhos, no final do sec. XX e nos primeiros anos do sec. XXI.
Em 1999, teriam organizado o ataque ao parlamento da Arménia, que resultou na morte do primeiro-ministro e de sete deputados. A finalidade seria prejudicar o processo de paz que haveria de pôr fim ao conflito em Nagorno-Karabakh.
Em 2003, Alexander declarou a uma televisão australiana que dois dos terroristas chechenos envolvidos na crise dos reféns do teatro de Dubrovka, em Moscovo, trabalhavam para o serviço de segurança da Federação Russa e que o FSB teria estado envolvido no ataque. Neste caso, existe alguma informação cruzada. Mikhail Trepashkin e Anna Politkovskaya acusaram igualmente o agente do FSB «Abu Bakar» de ter tido um papel determinante no ataque. As forças russas bombearam um gás tóxico para dentro do teatro, antes de o tomarem de assalto. Morreram os 40 atacantes e 130 reféns.

                        Vítimas do massacre da escola de Beslan

Em 2004, Litvinenko sugeriu que os serviços secretos russos tinham tido conhecimento prévio dos planos para atacar a escola de Beslan. No primeiro dia de setembro desse ano, um grupo de separatistas islâmicos inguches e chechenos ocupou uma escola na cidade de Beslan, na Ossétia do Norte, uma república da Federação Russa, no norte do Cáucaso. Foram feitos mais de 1.100 reféns, na maioria crianças. Ao terceiro dia de ocupação, as forças russas entraram no edifício, utilizando material bélico pesado. Morreram perto de 400 reféns, incluindo muitas crianças. Segundo Alexander Litvinenko, alguns dos atacantes conheciam as cadeias do FSB, sob acusações de terrorismo. Teria sido impossível, depois de libertados, participarem num ataque dessa envergadura. Ou teriam sido comprados, ou estariam submetidos a medidas rigorosas de vigilância. A violência desencadeada na escola de Beslan teria por finalidade desacreditar os separatistas chechenos e inguches.   
Litvinenko acusou repetidamente a KGB e as agências que lhe sucederam de estarem por trás de grande parte dos atentados sangrentos que ocorriam mundo fora. Segundo ele, muitos terroristas eram treinados, armados e pagos pelos serviços secretos russos. Afirmou: «o centro do terrorismo global não fica no Iraque, no Irão, no Afeganistão ou na República da Chechénia. O terrorismo propaga-se a partir dos gabinetes da Praça Lubyanka e do Kremlin, em Moscovo». É na Praça Lubyanka que se situa o edifício da KGB, herdado pelo FSB e pelo SVR.

                          al-Zawahiri à esquerda de Bin Laden

Ainda de acordo com as afirmações de Litvinenko, o líder da Al-Qaeda Ayman al-Zawahiri terá sido treinado pela FSB, durante meio ano, no Daguestão, em 1997, e transferido depois para o Afeganistão, onde se aproximaria de Osama bin Laden.

                          Julia Svetlichnaya

Há muitas formas de suicídio. Alexander gostou sempre de dar nas vistas. Segundo Julia Svetlichnaya, que preparava o seu doutoramento na Universidade de Westminster, Litvinenko tencionava contactar diversas personalidades russas, incluindo oligarcas e elementos da hierarquia do Kremlin, para lhes extrair dinheiro em troca da não publicação de documentos que as comprometeriam. Era uma excelente maneira de multiplicar o número de inimigos mortais.
Em 2002, Mikhail Trepashkin, também antigo agente secreto, informou Litvinenko de que uma unidade da FSB fora encarregada de o liquidar.
Alexander Litvinenko nunca se preocupou muito com a própria segurança. Viajava por onde lhe apetecia, recebia jornalistas em casa e participava na vida da comunidade russa de Londres. Falava demais, misturando o que sabia com o que imaginava. Nunca apresentou provas de qualquer das suas afirmações bombásticas. Desenvolveu, talvez mais do que ninguém, as teorias da conspiração e propagou aos quatro ventos as suas ideias sobre as estruturas do poder na Rússia.
Um professor da Academia de Defesa do Reino Unido considerou Litvinenko uma espécie de agência de desinformação formada por um único homem. A princípio, seria pago por Berezovsky. A partir de certa altura, terá começado a agir por conta própria. Vladimir Putin era o seu inimigo de estimação. Alexander acusou-o de tudo, inclusive de pedofilia.
No dia 1 de novembro de 2006, Litvinenko adoeceu subitamente e foi hospitalizado. Morreu três semanas depois. Terá sido vítima de envenenamento pela substância radioativa polonium-210. A sua doença recebeu ampla divulgação nas televisões de quase todo o mundo.
A 20 de janeiro do ano seguinte, a polícia britânica anunciou ter identificado o homem que envenenara Litvinenko. Teria sido apresentado à vítima como «Vladislav».

                          Andrey Lugovoi

O inquérito levado a cabo pelas autoridades policiais inglesas apontou para Andrey Lugovoi, antigo espião russo, como executante do crime. Lugovoi encontrara-se com Litvinenko no dia 1 de novembro de 2006, a data provável da administração da dose mortal de polónio radioativo.
Os britânicos pediram a extradição de Lugovoi, mas a Rússia recusou concedê-la. As autoridades policiais russas estariam dispostas a investigar e julgar o crime, se os ingleses lhes fornecessem provas suficientes da responsabilidade de Lugovoi.
A imprensa oficial russa acusou Boris Berezovsky de estar ligado ao crime, que teria sido perpetrado para manchar a reputação da Rússia no estrangeiro.
No dia 2 de outubro de 2011, o jornal Sunday Times publicou um artigo em que o investigador chefe da morte de Litvinenko, Lorde Macdonald of River Glaven expressava as suas suspeitas sobre o envolvimento da Rússia no crime: «tem todas as marcas de uma execução comandada por um estado, cometida nas ruas de Londres por um governo estrangeiro».
Nunca soube de um homem que precisasse tanto de adversários. Litvinenko era um fanfarrão. Quis morrer de forma violenta.
Aproximou-se do Islão de modo progressivo e converteu-se, na véspera da morte. Escolheu, contudo, morrer como Cristo. Exibiu-se como um crucificado emagrecido, sem cruz e sem cabelo, com tubos para administração de medicamentos introduzidos nas veias. Elegeu para mandante da própria morte, o mais mediático dos seus inimigos: Vladimir Putin.



É duvidosos de que Putin seja diretamente culpado. Decisões deste tipo são cuidadosamente pesadas na balança de ganhos e perdas e a eliminação física do desacreditado ex-agente do FSB teria de causar demasiados danos na imagem do líder russo. 

(Capítulo do livro não publicado Estranho Ofício de Matar, de António Trabulo).

Sem comentários:

Enviar um comentário