DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

quarta-feira, 11 de outubro de 2017


 A NARRATIVA TELÚRICA
   EM ESCRITORES MÉDICOS TRANSMONTANOS

      A PROPÓSITO DE MIGUEL TORGA E BENTO DA CRUZ

     II


    Ao falar na narrativa telúrica em escritores médicos transmontanos, começarei por Miguel Torga. Imagino que seria assim que ele gostava de se ver.


    Torga nasceu em S. Martinho de Anta, no concelho de Sabrosa em 1907, numa família humilde. Aos 10 anos, foi trabalhar para casa de familiares ricos, no Porto, e não se deu bem. Foi despedido por rebeldia e, em 1918, entrou para o seminário de Lamego, onde passou apenas um ano. Recusou fazer-se padre. Poderá ter perdido a fé.


    Com 13 anos, foi enviado para o Brasil, para junto do tio, que possuía uma fazenda de café em Minas Gerais. O tio deu conta das qualidades invulgares da criança e, quatro ou cinco anos depois, matriculou-o no Ginásio, em Leopoldina. O ginásio equivale mais ou menos ao nosso liceu. O moço distinguiu-se nos estudos e o tio entusiasmou-se com ele, a ponto de lhe pagar o resto do estudo liceal e o curso de Medicina.
    Em 1928 Adolfo Coelho da Rocha, entrou para a Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Publicou o seu primeiro livro de poemas, Ansiedade.


    Em 1929, aos vinte e dois anos, deu início à colaboração com a revista Presença, com o poema Altitudes. A “Presença”, fundada em 1927 por José Régio, Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca foi publicada até 1940. Centrou o movimento literário chamado “segundo modernismo” ou “presencismo”, que se haveria de revelar mais crítico do que criador. A revista ajudou a celebrar o primeiro modernismo e a divulgar as suas figuras de proa: Fernando Pessoa, Mário Sá-Carneiro e Almada Negreiros.
    Torga abandonou o grupo no ano seguinte, por «razões de discordância estética e razões de liberdade humana».


    Casou, em 1940, com uma belga nascida em França, Andrée Crabbé, que tinha vindo a Coimbra para fazer um curso de verão com Vitorino Nemésio.


    Aqui está Miguel Torga, à esquerda. Vitorino Nemésio é o senhor da direita e tem a seu lado Paulo Quintela. Avesso a correntes literárias, Torga foi sempre um individualista, um poeta solitário, para quem a independência e a liberdade de criar eram valores fundamentais. O chamado da terra, o apego às origens e a necessidade de revisitar o chão onde nascera, para se revitalizar, estão presentes em boa parte da sua obra.
    Torga publicou mais de 50 livros. Para ilustrar o meu tema, da sua vasta obra poderia ter escolhido contos, versos, ou um dos seus poucos romances. Optei pelos diários, essencialmente porque cobrem um período vasto da sua vida, e permitem acompanhar a evolução do escritor ao longo do tempo.
    Saíram 16 volumes do Diário, entre 1932 e 1993. São mais de sessenta anos. O escritor morreu em Coimbra, em janeiro de 1995. Está sepultado em S. Martinho de Anta.
    Escrutinei os volumes I, X e XIV dos diários, que me pareceram constituir uma amostragem razoável. A terra natal aparece logo nas primeiras páginas do volume inicial com um chamado forte e quase irresistível.

SMA, 5 de março de 1934
Como a gente se perde! A linguagem que o meu sangue entende – é esta. A comida que o meu estômago deseja – é esta. O chão que os meus pés sabem pisar - é este. E, contudo, eu não sou já daqui.
Pareço uma dessas árvores que se transplantam, que têm má saúde no país novo, mas que morrem se voltam à terra natal!
Ao partir, primeiro para o Porto e depois para o Brasil, de onde seguiria para Coimbra, Adolfo Coelho da Rocha ficou com o coração quebrado. Julgo que essa racha a meio da personalidade o acompanhou até aos dias finais.

SMA, 20 de abril de 1938
Tirei hoje o leite à cabra. Mas a minha mão já não é a mão justa do lavrador que conhece a medida da sua fome. Tirei tudo. Sequei tudo. Deixei o cabrito sem ração. Meu Pai olhou-me desanimado, e a cabra também.

Torga não se demorou no Brasil tempo que bastasse para o amar. Em Coimbra, onde decorreu a maior parte da sua vida de escritor e de médico, sentiu-se sempre um pouco inadaptado, com se nunca tivesse deixado de ser um estranho.

Saltemos agora 27 anos. Mal se dá pela passagem do tempo na escrita de Torga.

SMA, 12 de abril de 1965
Leio o nome da povoação nos marcos da estrada. Vejo logo a Senhora da Azinheira a branquejar no alto da serra, oiço o sino a badalar, sabe-me a boca a tabafeira, cheira-me a rosmaninho. 

Tabafeira, ou tabafeia, é uma alheira.

Já dentro da terra, tropeço em cada pedra, bebo em cada fonte, vou de anjo em procissão. Enquanto ando lá por baixo, esqueço-me de que tenho cá dentro um tal rosário de reações à espera de estímulo. Prova evidente de que os ramos e as folhas estão longe das raízes.
Tudo o que sou claramente não é daqui. Mas tudo o que sou obscuramente pertence a este chão. A minha vida é uma corda de viola esticada entre dois mundos. No outro, oiço-lhe a música; neste, sinto-lhe as vibrações.


29  SMA, 16 de agosto de 1966
S. Martinho é um reduto ideal. Uma fortaleza a que me abrigo duas ou três vezes por ano, e onde me sinto inexpugnável todos os dias.

SMA, 16 de abril de 1967
Seja qual for a estação do ano e a direção seguida, antes de sair de casa já sei que alimento os olhos vão ter pelo caminho. Neve no Larouco, rododendros cor de fogo em Magueija, soutos a pingar castanhas em Carrazedo de Montenegro. Mas é sempre com o mesmo alvoroço que parto, e com o mesmo deslumbramento que regresso. Para o verdadeiro crente, a missa nunca se repete. E a minha missa é esta. Uma íntima e diária comunicação com a natureza, nos transes da sua perpétua agonia, morte e ressurreição.

Sarraquinhos, Barroso, 17 de setembro de 1967
Atrai-me esta amplidão pagã, sinto-me bem a pisar um chão em que o deus vivo de ricos e pobres, de alfabetos e analfabetos, é o toiro do povo.
Um deus de cornos e testículos que, depois de cada chega e de cada vitória, a gratidão dos fiéis cobre de palmas, de flores, de cordões de oiro e de ternura.
Um deus a quem se dão gemadas e cervejas para que possa inundar as vacas de sémen, as moças de esperança, os moços de certeza e a senilidade de gratas recordações.
Um deus eternamente viril, num paraíso sem pecado original.

SMA, 23 de dezembro de 1982
Lá em baixo sou uma ficção entre ficções; aqui sou uma criatura entre criaturas.

Após a morte da irmã, ocorrida em abril de 1983, as visitas a S. Martinho de Anta tornam-se mais espaçadas.

SMA, 19 de setembro de 1984     

Estou que não posso. Pareço quebrado dos rins. A suar em bica, esfalfado, não dou tréguas ao corpo enquanto não vejo a terra limpa como a herdei dos antepassados. Pedem muito as raízes! Aqui, debaixo do seu império, pouco ou nada se me dá de ser bom ou mau escritor. Sinto-me, sim na obrigação de ser um bom cavador.

                                                                  (Continua)

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