DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

terça-feira, 4 de julho de 2017


ESPANHÓIS EM ALMENDRA


Durante a guerra civil espanhola, um grupo de republicanos espanhóis desarmados atravessou a fronteira a pé e internou-se várias léguas em território português para escapar às balas dos franquistas. Falo dum conjunto que chegou a Almendra e acampou no olival que ficava (e fica) frente à escola.
Foi o António Moreirão quem me relatou este episódio. A seu ver, poucos, em Almendra, terão dado conta dele.
O meu amigo António é mais velho que eu. Era criança quando os factos se deram. Acha que o episódio de terror que presenciou terá ocorrido no verão, durante as férias grandes de 1936, ou logo a seguir.
“ Sabes onde é a Rua Nova? Vai da Fonte Grande até à escola. Termina numa curva. Antes de se chegar ao cimo, nem a escola se vê. Eu ia sozinho e ouvi gritos. Acelerei o passo. Eram crianças que gritavam. Um grupo de soldados com uma farda que eu não conhecia estava a obrigar algumas famílias a entrar num camião, a meio do largo. Às tantas, tive medo de ser levado também. Escondi-me atrás duma moita, para que não me vissem. Percebi que falavam espanhol. Nessa altura, eu tinha sete ou oito anos”.
Os espanhóis fugidos eram homens, na sua maioria, mas traziam com eles algumas mulheres e crianças. Consta que o médico da terra, representante local da União Nacional salazarista, alertou os franquistas de Ciudad Rodrigo, que os vieram buscar. Quase ninguém em Almendra terá dado conta dos gritos de pavor e angústia soltados pelos infelizes quando se viram capturados.
Nasci em Almendra há 74 anos e só há meses soube desse acontecimento. Quantos casos semelhantes terão ocorrido ao longo da raia de Espanha? O nosso país terá sido olhado, à vez, como um santuário, pelas partes em luta.
Ora, o olival em causa ainda existe e dista poucas centenas de metros da rua principal da povoação. É quase impossível que os brados e os pedidos de ajuda dos republicanos não tenham sido escutados. Naqueles tempos revoltos, as pessoas tinham até medo de ouvir. Muitas consciências consideram aceitável fazer por ignorar o mal.
Como poderiam ter ajudado? É provável que ambas as partes tivessem partidários na terra. Não se pediria aos camponeses de Almendra que enfrentassem os franquistas armados. Não teriam, aliás, necessidade de o fazer. Provavelmente, bastaria que os da terra se mostrassem para que os estrangeiros largassem as presas e batessem em retirada. Teriam os almendrenses medo ao médico? Seria o caso de alguns.
Há histórias que ninguém gosta de lembrar. O medo habitava ambos os lados da fronteira.  Calavam-se bocas e almas em troca da segurança das vidas.


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