DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

domingo, 11 de junho de 2017


APONTAMENTOS DE FIM DE TARDE


Moro há muitos anos em Setúbal. A minha casa (centenária) fica junto ao Jardim da Algodeia.
Ao começo da noite, acompanho o meu cão num passeio pelo jardim. O Sebastião sujeita-se mal à trela. É o quinto cão, na minha vida adulta e, de longe, o mais difícil de conduzir. O meu genro Francisco, no dia em que o conheceu, aconselhou-me a dar-lhe Ritalina. É um medicamento usado em crianças hipercinéticas. Não parece que o nosso Presidente o tenha tomado.



O Sebastião descende de caçadores. Nunca está quieto e tem um amor exagerado à liberdade. Durante mais de um ano, libertei-o ao começo de cada noite. Corria e seguia os fios de cheiro até se fartar. Regressava a casa cerca de uma hora depois, com algumas variações no horário. Tive de lhe cercear esse hábito. Soube que havia quem estivesse a pensar fazer queixa à autoridade municipal, embora ele não constituísse ameaça para pessoas ou animais, excetuando gatos e patos. O problema dele é ser simpático demais. Torna-se chato.



Falemos dos patos que vivem no lago do jardim. Não é preciso saber adivinhar pensamentos caninos para estar certo de que o Sebastião sonha apanhar um pato. Não me parece que venha a ter êxito nesse projeto. As aves esperam que ele se chegue bastante perto e, depois, refugiam-se na água, onde manobram melhor que os cães. Os patos que se afastam para longe, no relvado, levantam voo mal o cão se aproxima. Julgo que o Sebastião se terá de conformar com a ração que lhe ponho no prato.
Vi esta noite o primeiro morcego do ano. O voo aos supetões é característico e inconfundível. Chocou-me ter passado tanto tempo sem me lembrar deles. Noutro tempo, quando o canavial não dera ainda lugar ao relvado do jardim, os morcegos, ao lusco-fusco dos dias quentes substituíam as andorinhas na caça aos insetos. Agora, por falta de “pasto”, os morcegos sumiram e as andorinhas distanciaram-se. Dantes, eu percorria no escuro as veredas do canavial acompanhado pelo Brutus e detinha-me a apreciar os enxames de pirilampos, quando era o tempo deles. Pirilampos, agora, nem vê-los. Quanto ao Brutus, morreu novo, de leishmaniose. O campo afasta-se da cidade.
Nem tudo foi mau, na passagem do canavial a jardim. A cidade ganhou outro espaço de lazer e número de mosquitos reduziu-se, embora haja anos em que continuam a atacar com força.
Ontem, por voltas das 22 horas, ainda havia duas famílias a acompanhar as suas crianças que brincavam no pequeno parque infantil.
No meu passeio, passo por pequenos grupos de moços e moças sentados nos bancos ou no muro que limita o Rio da Figueira. É frequente sentir junto deles o cheiro da canábis fumada.
Na estrada, um adolescente alto deslizava sobre patins a grande velocidade, rebocado por cão que, de longe, me pareceu ser Labrador. Gostei da exibição do puto, mas fiquei com o receio de que ele não chegue a velho. Patinar assim é correr riscos apreciáveis. Pelo menos no aspeto imediato, é mais perigoso do que fumar liamba. O meu Sebastião também apreciou a correria e tive de me empenhar para o conter.
Anunciaram há dias que o nosso país é o terceiro mais seguro do mundo. Talvez o seja, mas as imagens que vamos colhendo da televisão marcam-nos o subconsciente. Passei por um homem novo sentado sozinho num banco afastado. Tinha ao lado um saco de papel e estava a alimentar-se. Na volta seguinte, o homem desaparecera, enquanto o saco continuava poisado no banco. Achei que lhe faltava espírito cívico, até porque havia perto depósitos de lixo. No entanto, quando me aproximei, julguei distinguir um telemóvel ao lado do saco de papel.



Continuei a caminhar. O dono do telemóvel estaria por ali perto. Terá ido urinar atrás de algum arbusto. Fui controlando a imaginação enquanto regressava a casa. O jovem dificilmente se poderia ter suicidado. Do alto do muro ao leito seco do rio irão cerca de dois metros. Por outro lado, uma explosão ali provocaria apenas estrondo. Quando muito, chamuscaria as oliveiras que foram transplantadas para aquele lugar. Não, aquele não era local para um atentado terrorista. Pelo menos, àquela hora.

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