DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017


TAMEGÃO


CARLOS NUNES PINTO


V

 “ Quando a verdade se descuidou, a mentira tomou sexo e se multiplicou.”




Já o sol tinha começado a arrefecer e a lua cumpria sentinelas, pai e filho arrancaram virados ao mato. Caçar era bom para o miúdo se constituir em músculos. Para quê se arrimar em versos, se versos não se come quentes em fogueira de lenha branda?
− É preciso carne no esquecimento da fome
− Então vamos, pai.
Setas de ferro de pontas aguçadas. Na outra ponta, penas de águia da realeza, dentro da aljava, pele de búfalo que se arredondou virado saco. Zagaia de pau feito meia-lua no esticão da corda de sisal, de verde já perdido que de tanta porrada se desfibrou.
Para o filho se minuiram utensílios para lhe dar capacidades de acreditar ser repetição do pai. A mentira levantava poeira invisível nos olhos do sol e nas vergonhas da lua.   
O sol se apagou. A lua, que ainda era nova, não se revelou.
No breu se sumiram na aventura, pai na frente, filho nas pegadas.
Rodopiando em brilho, venenosa cobra se aventurou em beijo, picando a barriga tenra da perna da criança. Picou e repicou, transformando silêncios em gritaria de batuque.
O pai ainda conseguiu ver a criminosa se refugiar no capim seco, produzindo ruídos, arrepiando pêlos.
A criança caiu desamparada na secura da terra, no desânimo do sono da morte.
O pai, no instante, puxou o punhal, cortou o feitio da dentada e chupou veneno que se transformava em cuspo involuntário.
Nos intervalos, gritava:
− Reage na vida, dá pontapé na morte!
Parecia às vezes chorar. Afinal eram apenas restos mal cuspidos do veneno que lhe estavam queimando dentro dos olhos.
− Respira, grita, se movimenta faz favor, meu filho!
O menino abriu os olhitos, já quase revivido.
O pai, no silêncio da noite, chorou lágrimas das alegrias recebidas.
− Pai, alguém me salvou?

− Foi Tamegão, meu filho, eu vi! 

sábado, 28 de janeiro de 2017



TAMEGÃO 


CARLOS NUNES PINTO

IV
                                    

      “ A gente só treme por causa da confiança que não tem “




− O Menino no outro dia me disse que o Mundo parecia uma laranja, mas afinal é muito grande.
− É, Tamegão, é muito grande.
− Me disseram que tem tantas pessoas que já ninguém pode contar.
− Mas quem foi que te falou disso?
− O Menino pergunta muito, não pode ficar assim curioso, sabe porquê?
− Diz lá.
− Quando uma pessoa fica assim, começa a inventar respostas que depois não são iguais à verdade. A gente tem que ouvir, ouvir muito calado, pensar muito e quando a verdade chega a gente já sabe qual é.
− Está bem, mas quem foi que te falou dessa gente toda?
− Foi minhas visitas.
− Tuas visitas?! Eu nunca vi aqui ninguém!
− Só me visitam de noite, o Menino não vê. Eu só ouve as palavras deles.
− O que foi que te contaram mais?
− Me contaram que um Deus fez este Mundo em sete dias, nem descansou de noite.
− Isso é verdade, disse eu.
− Me disseram que ele julgava que sete dias chegavam para fazer tudo, os mares, a terra, os homens, os bichos, tudo, tudo mesmo. Como ele pensava que tinha muito tempo, sabe qual foi a terra que ele fez primeiro?
− Não, não sei.
− Foi África.
− A África porquê?
− Porque fez com calma, bem feitinha, e quando colou a Africa no tal Mundo, gastou muita cola, apertou muito bem. Por isso é que nossa terra nunca treme como as outras terras que, quando tremem, as casas se partem e mata muita gente, tanta gente que ninguém consegue contar os mortos.
− É, são os tremores de terra.
− Ainda tem mais: esse tal Deus alisou bem a África, devagarinho, para não ficar nenhum buraco, por isso aqui não tem aqueles buracos que vomita fogo. Nas outras terras, todas, esses buracos e esse fogo mata muita gente que fica toda queimada, parece cinza.
− Vulcões?
− O nome dessa coisa eu não sabe, só sabe que é na África que essas coisas não há. Deus se enganou no tempo. Se demorava mais dias todos podia dormir descansado, como a gente aqui pode.
− Graças a Deus.

− Graças porquê? Ele se enganou no tempo, podia?!

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017


TAMEGÃO


CARLOS NUNES PINTO


III
                                    

“ A gente é como o rio: quando corre tem um nome, quando entra no mar fica só Mar. “

− Bom dia, menino.
Fiquei admirado ter sido ele o primeiro a cumprimentar.
Só podia haver duas razões: ou estava ansioso que eu chegasse ou já estava a gostar de conversar comigo. Penso que a segunda hipótese era a mais correcta.
− Menino, hoje quem vai perguntar sou eu. Porque é que o mar precisa de tanta água e não é ele que vem buscar? O rio é que leva lá…
Era a minha grande oportunidade. Ia dar uma lição de ciências, ainda tão fresquinhas na minha cabeça.
− É por causa da gravidade.
− O quê, tem coisa grave aí?
− Não, este Mundo tem uma força que puxa todos os corpos para baixo, para o centro da Terra, por isso é que a gente não anda por aí sempre a voar.
Como queria ser ele sempre o sabichão, retorquiu:
− Eu já sabia isso, estava só a brincar! Sabe, as minhas mangas quando caem não vão a voar para o quimbo dos outros, senão eles é que comiam. Caiem mesmo aqui neste chão. Sabe, tal força é tão grande que puxa a manga para baixo, o pau é fraco e se parte. Quando puxa a manga ela não fica igual às outras, se estica e fica com aquele bico na ponta. Mas tangerina já não é assim porque tem um pau mais forte, e a força faz tanta força que a tangerina se puxa para cima e fica lisa no fundo. Quando a gente quer arrancar a tangerina, às vezes ainda fica um bocado de casca agarrada no pau.
Aproveitei a história da tangerina para continuar a minha lição.
− O Mundo é redondo como uma laranja, mas em cima e em baixo é mais direito…
− Oh! O Mundo é redondo?! Então como é que a gente não cai?
− Por causa da gravidade. Ainda te vou dizer mais: a terra, em cima e em baixo, está tapada de gelo.
−É por causa dos mosquitos?
− Não só, Tamegão, não só...
As minhas lições não estavam a resultar.

Saí triste, pisando cabisbaixo aquela terra de magia, onde as ideias de cada um valem muito mais que todas aquelas que lhes querem impingir.  

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017


EU E A PESCA
III
Vou continuar a falar da pesca e da minha relação com ela.
A verdade é que nunca fui um pescador a sério. Ao dizer “ a sério”, pretendo escapar ao estereótipo. Nunca aumentei um centímetro ao tamanho dos peixes que capturei ou que me fugiram.
Em tempos, cheguei a levar dois sobrinhos para a pesca. Tentámos pescar num braço do Rio Sado, junto à central térmica. Os seres que andavam lá no fundo mostravam-se lesto a limpar os anzóis, sem se deixar apanhar. Comentou o Osvaldo:
− Esses tipos são profissionais!
Houve alturas em que me deu para pescar em barragens. Usava asticot e verdemin, à procura de achigãs, mas os peixes grandes que vinham no anzol eram sempre carpas.


Casei, há mais de cinquenta anos, com uma excelente cozinheira. No entanto, a preparação de peixes de água doce está longe de ser a sua especialidade. Cozinhou as carpas o melhor que soube, mas o resultado foi desastroso: nem nós lhe pegámos, nem o cão as quis. A partir dessa altura, quando calhava capturar alguma carpa que se visse, na barragem do Castelo de Bode, onde fazia campismo, pavoneava-me com ela do embarcadouro até à tenda e depois em sentido inverso, para a oferecer ao rapaz do bar, que as apreciava.

                 "Mabeco", o meu primeiro barco

Nunca me dei bem com os achigãs, mas não fui o único. Certo dia, levámos connosco um colega. Era fisioterapeuta, mas inexperiente nas artes da pesca. Como a sorte protege quase sempre os tolos, foi-lhe logo ter ao anzol um exemplar de um tamanho invejável. Retirou-o e colocou-o na areia da margem da barragem. O peixe agitou-se e encheu-se de areia. O nosso amigo resolveu lavá-lo. O peixe agradeceu. Escapou-se-lhe das mãos e nunca mais ninguém o viu.
Há horas de sorte nas vidas dos pescadores. Uma única vez na vida, apanhei um achigã de dimensões consideráveis. Como o jantar já estava feito, deixámo-lo para o almoço do dia seguinte. Meti-o num balde com água, fora da tenda. De manhã, o balde estava virado e achigã, nem vê-lo. Ainda hoje não sei se foi cão, gato, ou animal de duas patas quem se banqueteou com ele.
A minha experiência de pesca foi longa e geralmente parca em resultados mas, ocasionalmente, lá vinham dias bons. Encontrava-me, certa tarde, a pescar no “coco” de fibra de vidro, próximo da praia de Albarquel. Havia duas outras embarcações perto. Estavam cheias de pescadores otimistas, mas o mar tem caprichos e o peixe também. Enquanto eu recolhia um alcorraz a cada dois minutos, eles, a uns trinta metros de distância, apenas lavavam as minhocas. Não resisti a fazer uma provocação:
− Que chatice! Só apanho peixes pequenos!
− Está mal habituado, disse um dos mais bem-educados do barco próximo.
Ao lado dele, houve quem me insultasse.
Naquele tempo, tínhamos um pequeno grupo que cada ano, em maio, subia o Sado até à Barrosinha, um par de milhas acima de Alcácer. Ali jantávamos e pernoitávamos. Nas passagens apertadas do rio, as fataças entravam em pânico com a vizinhança da embarcação e o ruído do motor e elevavam-se no ar. Algumas caíam dentro do barco. Foram os peixes mais facilitadores que encontrei em toda a vida.
Há muitos anos, fui a um congresso da minha Especialidade, em Acapulco. Eu, que sempre ouvia quase religiosamente todas as comunicações, resolvi oferecer-me um dia de férias e fui pescar, acompanhado por um colega alemão. “Pescar”, em termos turísticos é uma atividade domesticada. Os homens do barco conduzem-nos até ao pesqueiro e fornecem-nos as canas e o isco.
Era antes do euro e os marcos valiam muito. O meu colega germânico gratificou a tripulação logo à largada. O resultado foi ser dele o primeiro peixe. Como apanhámos três, fiquei a perder por dois a um.


Não me orgulho particularmente do peixe-vela que capturei, apesar de medir 2,36 m de comprimento. Teria preferido ser eu a esgravatar e a fazer o trabalho todo, com sucesso, ou não. Ainda por cima, não cheguei a provar o peixe maior que apanhei em toda a vida, e não sei se sabe bem ou mal.



Algum tempo mais tarde, ainda não tinha ganho juízo. Quando fiz 50 anos, oferecei a mim mesmo uma cana de combate e um carreto de corrico adequado à pesca do espadarte. Estão novinhos, no invólucro de pano original. Os espadartes, para mim, não passaram de um sonho. Diz-se que deixaram o mar de Sesimbra quando a chaputa escasseou. O mais que consegui foi avistar um a distância, a acometer um cardume. Os peixes pequenos tentavam fugir para o ar, tal como as fataças.

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

              

                      TAMEGÃO



             CARLOS NUNES PINTO


      Na tristeza da solidão, Tamegão dizia:

 “ É nas sobras do tempo que eu me pergunto e não me respondo. “

                              II


Em miúdo, tive uma dúvida: porque seria que as serras distantes eram azuis quando afinal estavam cobertas de árvores verdes?
Perguntei ao meu pai.
− Este miúdo tem cá cada pergunta!
Perguntei ao professor.
− Blá, blá, blá, ilusão óptica, blá,blá,blá…
A minha safa era o Tamegão.
− Bom dia, Tamegão, quero-te fazer uma pergunta.
− Não sei se sei.
− Porque é que as serras, lá longe, são azuis e as árvores que estão lá são verdes?
Pensou, pensou, mudou de assunto.
− Como se chama o menino?
− Carlitos.
− É bonito, não deixa ficar Carlão.
− Porquê Tamegão?
− Quando o meu pai me chamava Tameguinho todos gostavam de mim. Virei Tamegão. Agora me chamam feiticeiro.
− Mas tu não me respondeste!
− Sabe, vocês tem um Deus que gosta mais do azul. Quando esse Deus fez o Mundo fez mais mar azul que terra verde. Até lá em cima tudo ficou azul. Ainda mais: quando ele manda a chuva, chove menos no mar que na terra, e para a água do mar não acabar, os rios levam as águas para lá. Esse tal de Deus vos fintou! As árvores das serras viram azul porque ele engana os vossos olhos.
Pensei: já está melhor!
− Menino, agora quem vai perguntar sou eu.
− Diz lá.
− Me disseram que as pessoas nunca morrem, viram vida eterna, é verdade?
− É, a gente sobe para o Céu, fica lá ao pé de Jesus, da mãe dele, do pai dele. Até tem uns anjinhos com asas que tocam e cantam coisas bonitas para a gente ficar contente.
− Tem asas?! Assim como as galinhas?
− Não, são mesmo meninos pequeninos.
− Tá bem, agora me diz, como é que os brancos sobem para cima?
− Não é o nosso corpo que sobe, é a alma.
− Os negros também tem essa coisa de alma?
− Têm, todos os homens têm.
− Eu pensava que os negros não tinha porque me mostraram uma fotografia do tal Deus sentado numa mesa a comer com os outros, mais de dez, e não tinha lá nenhum negro. Nem mulher tinha! Mulher também tem alma?

− Às vezes, Tamegão, às vezes...

domingo, 22 de janeiro de 2017

TAMEGÃO

                                   


Este blogue tem incluído ocasionalmente artigos de amigos e, até, um livro da minha neta Leonor. Chegou a vez do “Tamegão”, uma criação do Nunes Pinto, amigo de longa data.     
 Carlos Nunes Pinto nasceu na Bibala (Vila Arriaga), no sul de Angola. Naquele tempo, a vila estava infestada de paludismo. Se um miúdo, na casa de banho da escola, via sangue na urina, regressava a chorar. Fora marcado pela morte. Era a biliosa, uma complicação grave da malária.
As mães separavam-se dos filhos lactentes e enviavam-nos para Moçâmedes, onde tinham maiores probabilidades de sobreviver. Quando os pais do Carlos viram crescer os dois primeiros filhos, acharam que tinham a descendência assegurada e resolveram arriscar. Geraram outro par de rapazes e criaram-nos ali mesmo. Quem conhece o Carlos, vê que o fizeram bem.
Passavam-se poucas coisas naquela terra encalhada entre o deserto do Namibe e a Serra da Chela. O tempo sobrava. Escorria devagar. Para o entreter, inventavam-se histórias e lembravam-se lendas.
A oralidade dos contos africanos está bem presente nesta obra. O autor aprendeu-a nos serões da Bibala, no tempo em que as pessoas ainda se escutavam umas às outras. Não havia televisão, e os poucos aparelhos de rádio nem sempre funcionavam.
A História é cega. Impôs a sua força. Meio milhão de portugueses deixou África. A grande maioria instalou-se em Portugal. Muitos nunca tinham estado cá. Eram filhos, ou netos de emigrantes. Deixaram quase tudo o que tinham. Trouxeram o saber fazer.
Essa capacidade técnica, em áreas diversas, facilitou a integração e empurrou o País para um salto em frente. Com a descolonização, Portugal ficou mais rico e as antigas colónias mais pobres.
O autor mergulha nas recordações da infância, modifica-as e recreia-se. Procura sistematicamente cruzar dois saberes, o dos brancos e o dos negros. Integrados, poderiam fazer uma Angola melhor. Não aconteceu assim.
Atribuir culpas é tão inútil como julgar a História. Os contos do Tamegão são histórias de amor e de perda. Representam uma tentativa pessoal de reconciliação com o passado. Espero que vos encantem tanto quanto me encantaram.



Dito do Tamegão:


“Verdade às vezes não é verdade, só é verdade aquilo que não é mentira “

I

Quando aquilo que vou contar ocorreu, devia ter eu os meus doze anitos, porque me lembro de ter sido nessa altura que aprendi, em ciências, o ciclo da água.
Sempre ouvi dizer, em Vila Arriaga, que certo dia, quando as chuvas grandes duraram sete dias e sete noites, caíram peixes do céu. Os velhotes diziam que tinha chovido peixes.
Achei que era impossível. Lá chover peixes eu ainda engolia, mas a minha tenra idade não permitia que fosse mais além. Rematei apenas para mim: isto são coisas que a ciência faz para quebrar o encantamento das lendas…
Como se tinha quebrado para mim aquela verdade, repetida durante anos, e como não queria aceitá-la tão facilmente, decidi perguntar-lhe:
− Tamegão, tu te lembras do dia que choveu peixe?
− É verdade, até os filhos dos negros comeu. Caiu tanto peixe lá de cima que ficou todo espalhado na rua (nunca utilizava a palavra Céu, não sei se por ignorância, se por se sentir acima dele – substituía-a por “cima”).
− Menino, choveu tanto, tanto, que rio Giraul engoliu o comboio. O comboio nunca mais passou, não passou muitos meses. Só passava ali − e apontava com o sexto dedo para um lugar onde nem havia via-férrea.
Chamei a sua atenção para isso.
− Se eu viu o fumo como é que não tem linha?!
Nem retorqui, porque me apercebi que o seu tom de voz se tinha alterado.
− Se o menino não acredita, não precisa falar mais.
Fiquei quase sem sangue porque, confesso, também tinha medo do Tamegão.
Tamegão, segundo se dizia, era feiticeiro e virava matchituca em certa fase da lua, não sei se na nova se na cheia.
Teria nascido há mais de noventa anos, não se sabe onde, porque era conhecido que o preto só pinta quanto tem três vezes trinta.
Nasceu com um defeito na mão direita – tinha seis dedos.
Era esse sexto dedo que ficava coberto de pelos na tal fase da lua; não sei que nome teria esse dedo, não era polegar nem indicador. Parece-me que naquele tempo ainda não se dava nome a isso.
Por culpa desse facto, ou talvez pelo aproveitamento que o Tamegão fazia dele, o velho vivia isolado, numa casa de pau-a-pique com três grandes mangueiras nas traseiras (se é que as casas dos negros têm traseiras).
Só a mais de um quilómetro começavam a espalhar-se as cubatas dos outros, porque todos tinham medo do Tamegão.
Não era para menos, porque a morte de algum negro de idade avançada era sempre atribuída aos feitiços e quimbandices do Tamegão. Já o mesmo não se passava com a dos jovens e crianças.
Contava-se que Tamegão sabia ler, porque estava muitas vezes sentado no tronco de uma árvore, de livro na mão.
Julgo que fazia isto para se mostrar superior aos olhos dos outros.
Tanto se falou disso que o Administrador, que já começava a acreditar, mandou que um sipaio o fosse buscar, porque, entretanto, tinha eclodido o terrorismo e era incómodo ter gente letrada na zona.
− É verdade que tu sabes ler?
A vaidade foi mais forte e respondeu que sim.
− Então lê isto! Atirou-lhe um edital para as mãos.
− Esse papel eu não sei, só os livros que o Padre Carlos me mandou eu sei.
− Então onde é que aprendeste a ler esses livros?
− Naquele buraco da Serra, onde tem aquela cobra que fala.
Já sem paciência nenhuma, o Administrador mandou-o em liberdade.
Dizia-se que se alimentava apenas das mangas das suas mangueiras, que começavam a amarelecer em Dezembro. Ficava, no entanto, a dúvida: sobravam muitos meses, mesmo muitos, depois da época das mangas.
Perguntei-lhe se era verdade.
Respondeu-me:
− Ninguém acredita, menino, porque mais ninguém sabe guardar mangas como eu.
Fingi que acreditava, porque os meus verdes anos me levaram a pensar que lá teria o seu processo de conservação. Fosse qual fosse, também não me interessava.
Era talvez mais evoluído do que os brancos que salgavam o peixe e a carne de porco, (tudo isto, é claro, antes do aparecimento das geleiras a petróleo, de torcidas fumarentas e mal cheirosas).
Menos acreditei ainda quando vi ali perto um galo preto e luzidio picando a areia do chão.
− Pelo menos galo tu comes?
− Não, menino, esse galo não tem carne dentro, tem o espírito de um velho que morreu cansado.
Não tinha o direito de duvidar, nem tão pouco o de acreditar.
A tarde tinha passado depressa, ou a noite chegado cedo. Despedi-me, talvez agradecendo.
Quando já me distanciava uns dez metros, ouvi, atrás de mim, um grande vozeirão.

− Há mais – Os meus pés, ainda pequenos, pisaram gelados a terra africana. Na tua escola, cinco e cinco são dez, na minha mão são onze!  


sábado, 21 de janeiro de 2017


    MENÇÃO HONROSA NUM CONCURSO ARGENTINO



   O diploma chegou maltratado, com sinais de sevícias. Vem amarrotado, sofreu o arrancamento de um canto e tem aspeto de ter sido molhado - talvez fosse a água das cataratas. Representa, ainda assim, a minha segunda (ainda que pequena) distinção internacional.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017


EU E A PESCA

II

Quando voltei do mar, instalei-me em Setúbal. A dada altura, lembrei-me de comprar uma cana pequena e de ir pescar no Rio Sado. Levei comigo a minha filha Marisa, que teria, na altura, uns sete anos. Escolhemos tentar a sorte na muralha, a montante do Clube Naval, onde já se encontrava um pescador.
Abri a embalagem e pus-me a montar o carreto na cana. Era coisa que nunca tinha feito, o que justificava alguma atrapalhação. A minha filha meteu-se com o vizinho.
−Tu não pescas nada. Vais ver o meu pai, daqui a bocado…
O homem procurou ignorar as provocações. A dada altura, sentiu picar e retirou a linha para ver se ainda tinha isco. A Marisa gritou:
− Olha! Pescaste uma minhoca!
Aquilo foi demasiado para o moral do meu vizinho pescador. Recolheu o material e afastou-se. Terá ido procurar um sítio mais sossegado.
A Marisa era uma menina precoce. Ao chegar a casa, fez uma redação. Dizia, mais ou menos isto:
“Fui com o meu pai à pesca, mas só pescámos peixes charrocos. No fim, o meu pai atirou os peixes para o rio e voltámos para casa.”
Os “charrocos” eram cabozes.


A partir de dada altura da minha vida, tive sempre barcos. Entretinha-me a pescar na Baía de Setúbal. Raramente apanhava peixe que se visse, mas importava-me pouco com isso. Não me levantava de madrugada e nunca pescava no inverno. Ia para onde me apetecia. Na maioria das vezes, os peixes escolhiam lugares diferentes dos meus. Ainda por cima, uma boa parte da minha atividade predatória desenrolou-se a bordo de embarcações à vela, mais obedientes aos horários do vento que aos do peixe. A quilha era outro obstáculo de peso. Para chegar aos pesqueiros mais frequentados em Setúbal, teria de fazer um grande desvio, para evitar os bancos de areia frente à Troia.

A bordo do "Gisa", o meu primeiro veleiro

Durante anos a fio, tive o Gisa fundeado em Albarquel, antes das obras que levaram para lá areia, um restaurante e turistas. O Gisa era um veleiro de 6,7 metros, construído em Portugal e fácil de manobrar por um homem só. Deixava um “coco” de fibra de vidro amarrado na praia, para o transbordo. Às quartas-feiras, saía mais cedo do trabalho e, entre abril e setembro, passava no barco duas horas, ao fim da tarde, a fingir que pescava. Ao menos, descontraía-me.
Foi numa dessas tardes que sofri a maior humilhação da minha vida de pescador. Havia ali muito peixe pequeno que picava constantemente. Apesar de usar anzóis diminutos, a maior parte das vezes levavam-me o isco sem se deixarem fisgar. Por essa razão, pescava com duas canas, para ter uma linha no fundo, enquanto punha casulo ou minhoca no anzol da outra.

Estava entretido nessa tarefa quando vi a cana deslizar e mergulhar na água. Um pampo levou-ma. Acho que ainda o ouvi rir-se lá no fundo. 

terça-feira, 17 de janeiro de 2017


EU E A PESCA

I

O meu neto Vasco pediu-me que o levasse a pescar. A ideia não pode ter nascido na cabeça dele. Tem cinco anos e só viu peixes vivos no Aquário Vasco da Gama. Foi a minha filha mais velha que inventou mais uma maneira de o aproximar do avô.
A pequena conversa serviu para me avivar a memória. Durante boa parte da minha vida, fui pescador, ou fingi sê-lo. Pesquei os primeiros peixes no Rio Cunene, na parte de cima das cataratas do Ruacaná. 


Ia nos catorze anos e viajara, numa excursão da Mocidade Portuguesa, até perto da fronteira de Angola com o Sudoeste Africano (atual Namíbia). Alguém levara linha e anzóis. Não me lembro quem foi, mas estou certo de não ter sido eu. Os peixes desconheciam essas modernices e deixaram-se apanhar.
Fiquei a pensar que aquilo era fácil.
No regresso ao Lubango, onde morava, tentei fisgar o Senhor Messias. Era um bagre grande que morava no poço do quintal da minha amiga e vizinha Fernanda. 


Aquilo era praticamente um aquário e o peixe era de estimação. Velho e astuto, mostrou-se indiferente aos variados petiscos que eu lhe fui propondo no anzol. Passaram sessenta anos. Que são sessenta anos? Se calhar, o Senhor Messias ainda lá nada.
A vida puxou-me para fora do Lubango e, a dada altura, levou-me para o norte do Oceano Atlântico. Ocasionalmente, o Gil Eannes fundeava em locais onde havia peixe. Eu e o meu colega Barros Pereira tínhamos muito tempo livre e entretínhamo-nos a pescar. Eram quase sempre solhas, que o cozinheiro aproveitava para variar a ementa.
No total das duas campanhas, passei três meses em navios de pesca à linha, com dóris. De vez em quando, as embarcações calhavam em fundos onde o bacalhau abundava. Certo dia, na costa da Gronelândia, perto do Círculo Polar Ártico, apanhei mais de cento e cinquenta quilos de bacalhau. Metade dos pescadores do Neptuno capturaram menos do que eu. Fiquei com as mãos gretadas pelo fio de nylon da azagaia, mas a fossanguice impedia-me de parar. 


     Mais tarde, e durante anos a fio, dediquei-me à pesca na Baía de Setúbal. Falarei disso noutra ocasião.