DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014


Pouco tenho escrito nos blogues nos últimos tempos. Felizmente, não tenho estado doente, e não se trata de preguiça ou de desinteresse. Isto acontece quando atravesso períodos de maior produção literária.
Apresento-vos a minha obra mais recente. É um volume de 33 contos. 
Irei divulgar aqui alguns dos mais pequenos. Começo com «Os Henriques».



                                                OS HENRIQUES   
    
Não via o Henrique há muito tempo. Não sei bem há quanto, mas julgo que passaram três dezenas de anos. Ontem, encontrei-o duas vezes, com intervalo de horas. Estranhamente, passou por mim com idades diferentes.
Aconteceu primeiro de manhã. Eu tinha ido tomar café e comprar o jornal. Surpreendeu-me vê-lo tão estragado. O que me devia admirar era a estranheza. Lembro-me de ter escrito em algum lado que ninguém retoca as recordações com os estragos do tempo. Ele não estava mais novo nem mais velho do que deveria estar. Afinal de contas, somos da mesma idade.
Não me viu. Passou por mim no seu costumeiro passo rápido. Voltou-se, quando o chamei. Ficou surpreendido. Reconheceu-me e deu-me um abraço apertado.
─ António! Não te via desde o Lubango. Estás mais gordo… Disseram-me que eras médico.
 O Henrique sabia que eu gostava de falar de mim. Mesmo nas vidas menos aventurosas, acontecem muitas coisas em trinta anos. Contei algumas. Ele escutou-me durante alguns minutos, antes de me interromper.
─ Desculpa, mas tenho um encontro marcado e já levo algum atraso. Para a próxima vez, conversamos mais.
Tirando as rugas, a falta de cabelo e as lentes mais grossas, afinal tinha-se modificado pouco. Lembro-me dele sempre cheio de pressa. Foi-se embora sem me dar a oportunidade de lhe indicar o meu número de telemóvel. 
Depois do almoço, voltei a encontrá-lo, na mesma rua e quase no mesmo sítio, mas com muito menos anos. Viu-me antes de eu o ver e dirigiu-se logo a mim. Não pareceu reparar que eu tinha envelhecido. Iria jurar que nem deu por isso.
 Foi fácil reconhecê-lo. Recordo bem o adolescente esgrouviado que tinha a fama de espreitar as miúdas na casa de banho e gostava de subir às árvores dos quintais do Lubango.
Não tinha mudado. Devia ter os mesmos quinze anos e continuava cioso da sua motorizada nova.          
 ─ António! Como vão os estudos? Continuas a ser bom aluno?
Nem sei bem o que respondi. Deixei de estudar há muito tempo.
Era o Henrique, ou melhor, eram os Henriques. Voltei a encontrá-los algumas vezes, nessa mesma semana. Trocámos conversas rápidas. Demonstravam pouca simpatia um pelo outro. Nunca os vi conversar cara a cara. Vinham ter comigo e falavam como se eu fosse uma espécie de mensageiro. Por vezes, senti-me obrigado a branquear a dureza das mensagens que enviavam.
O Henrique novo considerava que o mais velho conseguira pouca coisa da vida. Nem sequer se tinha licenciado. O de mais idade achava o puto pretensioso e com ambição a mais.
O mais novo acusava-o de ter deixado a Sofia, por quem se tinha apaixonado.
─ Ele não tem olhos na cara! Não viu que poderia ter sido feliz com aquela mulher? Abandonou-a e, agora, andam para aí os dois aos tombos…
─ Esse pateta nunca soube que ela cheirava mal da boca!
─ Deixaste de falar com a mãe quando o pai morreu!
─ Eu gostava muito do pai. A mãe atraiçoou-o com um gajo do Banco de Portugal.
Os Henriques desapareceram. Não os voltei a ver. Não lamentei as partidas. Era amigo de ambos e sentia-me desconfortável no papel de pombo-correio.
O tempo prega-nos partidas e chega a ser difícil entrançar as idades que se vão sucedendo. Recordo um fragmento de um poema que escrevi há muitos anos:

   É frágil o fio que ata aos outros os dias de uma vida
   e o adolescente que fui é-me pouco familiar…
 Quem poderá dizer que são mesmo suas as recordações?







terça-feira, 23 de setembro de 2014




Apresento, com algum orgulho, o meu décimo segundo livro publicado em suporte de papel. Começou por ser uma biografia de Amílcar Cabral. Os capítulos, na sua forma inicial, foram sendo apresentados neste blogue. Ora, os livros têm dinâmicas próprias. A dada altura, constatei que a figura do fundador do PAIGC, apesar da sua relevância, ocupava apenas cerca de metade das páginas do volume. Dei-lhe, portanto, um título mais abrangente.



    Espero poder apresentar o livro de contos intitulado «Ofício de contar» dentro de um ou dois meses. Será uma forma de compensar o facto de não ter feito sair qualquer obra durante o ano de 2013.

 António Trabulo

sábado, 12 de julho de 2014

   

                            A MINHA AVÓ




Toda a gente tem, ou teve duas avós. A única exceção possível é o nascimento duma relação incestuosa entre pai e mãe. Todavia, “a minha avó” é a avó Amélia. Da avó Delfina, pouco lembro. Recordo apenas que me oferecia rebuçados que ela própria fazia.
Tanto quanto se sabe, na minha família os homens não eram parvos. Casavam-se, relativamente tarde, com raparigas novas. Esse facto aliava-se à conhecida longevidade feminina para inscrever viúvas no rol dos antepassados. Conheci as duas avós, uma bisavó e uma tia-avó. Dos avôs, sei apenas o que me contaram. Morreram antes do meu nascimento.
A minha avó Amélia chamava-se Elvira. Lá estou eu a brincar… O seu nome completo era Elvira Amélia Folgado. Fiquei com o “Sancho” do meu avô João. Provavelmente, “Folgado” assentava-me melhor.
Os meus quatro irmãos mais velhos (dois homens e duas mulheres, felizmente vivos e relativamente saudáveis) têm o meu pai por figura tutelar e até totémica. Talvez por o ter deixado cedo (17 anos) nas alturas do Lubango, a minha grande referência familiar é a avó Amélia.
É dela que falo mais aos meus netos. Há de persistir na memória deles muito tempo após o meu passamento. É que, digam o que disserem os crentes, não existe outra vida além desta e um homem morre de vez quando desaparece da face da terra a última pessoa que guarda recordações (boas ou más) dele.


Dizem que a minha avó, na juventude, era bela. Dela (e do avô do outro lado) provêm os olhos claros que predominam na minha descendência. Falava do marido com carinho mas, quando o padre lhe perguntou esse era de sua vontade casar com João Sancho, respondeu com um rotundo “não!” 
     Lá lhe deram a volta. Contava-me, três quartos de século mais tarde:
Naquele tempo eu queria era brincar com bonecas…


Reaprendi a conhecê-la quando voltei para Portugal. Passava em Almendra as férias de verão. Bem gostaria de estar umas semanas numa praia, mas a minha bolsa de estudos não dava para isso.
Quando a minha mãe morreu, recebeu-me ainda com mais carinho. Declarou:
Agora, sou duas vezes tua mãe!
Por essa altura, a avó Amélia já entrara havia algum tempo na nona década da vida. Via mal, estava meio surda e deslocava-se com dificuldade, inclinada para a frente.
Eu achava que já era homem. Quando me julgava adormecido, ela deslocava-se até ao meu quarto (“toc, toc, toc”) e ajeitava-me os cobertores. Sabia bem…
Pelos vinte anos, arranjei uma namorada na Queima das Fitas. Reprovei a uma cadeira, pela única vez na minha vida e perdi o ano. A avó não me fez críticas. Deixou-me andar por ali durante três semanas, como se nada se tivesse passado. Ao fim desse tempo, chamou-me e disse:
Agora, toca a estudar!
Eu era um aluno razoável e ela tinha certo orgulho em mim. Quando me licenciei, ficou contente.
Este ano, em Almendra formaram-se três doutores, filhos de três doutores…
Sabe-se o que valem os títulos, se não tiverem conteúdo que os alimente. Jorge Amado que o diga…
A minha avó era uma pessoa resistente e viveu mais tempo do que todos os amigos e inimigos.  Já perto do fim da vida, incompatibilizou-se com um vizinho, por causa da divisão dum pequeno terreno a que nenhum dos dois tinha direito. Insultava-o:
Aquele miúdo! Aquele fedelho!
O fedelho era o homem mais velho da terra e ia nos 93 anos. A avó Amélia nascera três anos antes.
Nunca ia ao médico e tinha a aguardente por única mezinha. Aquilo servia para tudo: dor de dentes, reumatismo, mal de estômago… Não abusava da medicação, pois o equivalente a uma garrafa de cerveja dava-lhe para todo o ano.
Com 98 anos feitos, sofreu um acidente vascular cerebral. Ficou retida na cama e demenciada. Era o tempo dos emigrantes, que vinham passar férias a casa e a que chamavam “franceses”. Integravam os pesadelos da avó.
Quando eu voltava a Almendra, repudiava-me:
− Quem é o senhor? Que está aqui a fazer?
− Avó! Eu sou o Toneca… (era assim que me chamavam e ainda me chamam os meus irmãos).
− Não é nada! O senhor é um ladrão, um francês!
O estado de consciência flutuava:
− Mas se fosse o Toneca, quantos beijos e quantos abraços eu lhe daria…
Chorei, vezes sem conta, ao contar este episódio. Serve-me de exemplo para afirmar que, em certos casos, o amor dura mais do que a razão.
Esta é uma das histórias que, possivelmente, os meus netos irão passar aos netos deles.



sexta-feira, 11 de julho de 2014

                                    
      O HELIPORTO DOS ARCOS



Moro em Setúbal. As janelas do meu escritório dão para um heliporto que dista menos de 100 metros. Fica junto à relva do parque, logo atrás dos Arcos, um aqueduto quinhentista que outrora trazia água para o centro da povoação.


Tem ao lado um belo cata-vento semelhante aos de alguns aeroportos. Uma placa ao lado enquadra-o no Plano Municipal de Reintervenção do Centro Histórico de Setúbal e descreve-o: trata-se de uma plataforma de aterragem para helicópteros. A placa está enfeitada com os logótipos do Município, do Feder, do POVT (Programa Operacional Temático de Valorização do Território e do QREN (Quadro de Referência Estratégica Nacional). Algumas destas instituições terão contribuído para o seu planeamento enquanto outras o financiaram. 


Não se pode dizer que o investimento tenha sido avultado. A calçada já lá estava, em pedra clara. Bastou pintar um círculo com tinta branca e estava feito o heliporto. Fizeram outro círculo de menor diâmetro, em alvenaria.
Quando dei por ele, alguns anos atrás, preocupei-me. Ninguém gosta de morar ao lado dum aeroporto. Não tinha o direito de protestar, uma vez que a plataforma se destinava aos helicópteros do INEM que transportavam doentes urgentes.


Felizmente para mim, nunca vi lá qualquer aparelho voador. A situação foi revista e a localização do heliporto acabou por ser considerada perigosa e inadequada. 
     Posso dormir e trabalhar em paz, mas não deixo de interrogar: por que é que não analisaram as condições de poiso antes de o completarem?


terça-feira, 8 de julho de 2014

                    

                    O PLÁGIO DE EÇA



Publiquei o essencial deste artigo há três dezenas de anos, no Jornal de Letras. Pareceu-me interessante arejá-lo agora no «decaedela».
Não enfileirando com os que consideram Eça de Queiroz o maior prosador português de todos os tempos, respeitei sempre a sua escrita e procurei aprender com ela. No entanto, não existem homens perfeitos. «Não há bela sem senão». «No melhor pano cai a nódoa».
Há 35 anos, encontrava-me em Barcelona a treinar microcirurgia. Numa tarde fria de março, fui ao cinema do bairro. Passava no cinema do bairro, junto ao Paseo de Gracia, uma fita de Pasolini, «Os Contos de Canterbury», Reconheci facilmente, numa das histórias, o conto «O Tesouro», atribuído a Eça de Queiroz.



Decidi esmiuçar o assunto. Li duas biografias de Eça e tomei de empréstimo, da minha amiga Júlia Marvão, «The Canterbury Tales», de Chaucer.



   Era uma edição da Penguin e apresentava os versos adaptados ao inglês moderno. «The Pardoner´s Tale» ocupava as páginas 260 a 272. «O Tesouro» correspondia mais diretamente às páginas 269 a 271.



Eça fez uma introdução diferente e abandonou a parábola da Morte procurada tolamente pela soberba da juventude. Manteve, no entanto, o enredo básico. A pequena diferença na sucessão dos crimes nada mudava, no essencial.
Posta de lado a hipótese de coincidência, inverosímil para quem comparasse as histórias, poderia admitir-se a origem comum dos textos, perdida algures no tempo e no pó das estantes, a meio do antigo património cultural que a circulação dos livros e das fronteiras terá feito europeu. Na realidade, a paternidade dos contos não parece sequer ter sido reclamada demasiado vivamente por Chaucer. No final do século XIV, a originalidade era menos apreciada nos escritos que o estilo que os vestia. «Não era considerada função de um contador inventar as histórias, mas apresentá-las e embelezá-las com todas as artes da retórica, com a finalidade de entreter e instruir» (Nevill Coghill, na edição que consultei dos Contos da Cantuária). Os contos narrados pelos peregrinos de Chaucer provinham de toda a Europa e mesmo do Oriente. Uma das poucas narrativas atribuídas ao próprio Chaucer é a do «Canon´s Yeoman».



Geoffrey Chaucer, homem da Renascença e leitor insaciável, conhecia bem a literatura latina, francesa, anglo-normanda e italiana e teve a oportunidade de contactar com a galaico-lusitana. O escritor era protegido de John de Gaunt, duque de Lencastre, ligado às duas últimas guerras do reinado do nosso D. Fernando e à guerra da independência que se lhe seguiu. 



     Não acompanhou o seu protetor quando este, depois de invadir e tomar a Galiza em 1386, se avistou com D. João I na fronteira norte de Portugal. Não assistiu assim ao primeiro encontro do novo rei de Portugal com D. Filipa, filha do duque, em Poço de Mouro, entre Melgaço e Monção.



Cônsul de Portugal em Inglaterra durante 14 anos, Eça teve oportunidades de sobra para conhecer a literatura inglesa. Terá lido Chaucer e escrito uma versão de um dos seus contos. É de admitir que, pressionado pelos editores e carente de dinheiro, se tenha servido de um texto alheio sem mencionar devidamente a sua fonte.



As dificuldades económicas que acompanharam Eça ao longo da vida são bem conhecidas. Os proventos da escrita contribuíam minoritariamente para o seu orçamento. Ainda assim, em 1878, em Bristol, somavam 29 libras semanais num total de 80 (carta a Ramalho Ortigão) e obrigavam à feitura mensal de uma novela para a Chardron, além da correspondência para «A Actualidade».
Por essa altura, um irmão de Ramalho, radicado no Brasil, sugeriu a Eça de Queiroz colaboração para «A Gazeta de Notícias», do Rio de Janeiro. «O Tesouro» foi publicado na Gazeta em 1884. Ao tempo, Eça era cônsul em Paris e escrevia «A ilustre casa de Ramires».
Já lá vão 130 anos. Chaucer jaz na Abadia de Westminster desde 1400. Pouco se tem falado neste assunto. É fácil imaginar o embaraço dos queirosianos devotos que descobriram o pecadilho do grande mestre.

Esse indiscreto Pasolini…

Imagens: Internet

sexta-feira, 13 de junho de 2014




         E vai outra distinção… A maré parece estar a encher…
    O Lions de Portugal atribuiu hoje a uma senhora o prémio (único) de novela. A também única “menção honrosa” coube ao meu conto comprido “O Geronte dos Mares”. 
     Os candidatos eram 67. Havia entre eles alguns escritores brasileiros.


    A escrita é um trabalho solitário, muitas vezes antipático e até antissocial. A gente enfia-se no escritório e tenta  evitar intromissões. 
    Um homem tem uma ideia do próprio valor, mas ela não deixa de ser subjetiva e potencialmente errada. Reconhecimentos como estes afagam o “ego” e dão-nos ânimo para prosseguir a caminhada.



sexta-feira, 23 de maio de 2014


          PRÉMIO ALDÓNIO GOMES


                             UNIVERSIDADE DE AVEIRO




                Aos 70 anos, ainda se ganham prémios...



domingo, 27 de abril de 2014

   CANONIZAÇÃO DE DOIS PAPAS




Paulo Mendes Pinto, que não será descendente de Fernão, escreveu ontem no jornal Público que foram canonizados 76 papas no primeiro milénio da era cristã e apenas 5 no segundo. Hoje, duma assentada, o Vaticano apresenta à veneração dos católicos mais dois papas santos.
Os santos não existem, tanto quando sei, na Bíblia. Serão uma criação da Igreja Católica. Julgo que representam um sincretismo entre o monoteísmo da tradição judaica e o politeísmo profundamente enraizado na Europa em que o cristianismo proliferou. Os santos são considerados mais próximos de Deus. Por terem uma vida justa, serão ouvidos mais facilmente pela divindade, geralmente menos atenta às preces do comum dos crentes. Vêm sendo associados desde sempre à produção de milagres.
Milagre é uma interrupção temporária das regras da natureza, conseguida por intervenção divina. Trata-se habitualmente de curas inexplicáveis. Nos tempos modernos, até alguns católicos vão pondo em dúvida a sua existência.
O ar bonacheirão de João XXXIII, a par do seu esforço de renovação da Igreja, com a abertura do Concílio Vaticano II, tornou-o popular mesmo entre os não católicos.


Por outro lado, correram mundo as imagens dos últimos anos de vida de João Paulo II. As fotografias do velhinho muito torto, vestido de branco e agarrado à cruz impressionaram a sensibilidade dos fiéis.
Enquanto o pontificado de Ângelo Roncalli não chegou a durar cinco anos, o papado de João Paulo II foi o segundo mais longo da história da Igreja (27 anos). Foi também o mais mediatizado de todos. O período de tempo prolongado à frente dos destinos do Vaticano expô-lo, naturalmente, a mais críticas. Karol Wojtyla adotou uma postura geralmente conservadora em todas as questões debatidas modernamente no seio da Igreja: o celibato dos padres, a ordenação de mulheres, a contraceção artificial, o divórcio, o aborto e a homossexualidade. Interveio declaradamente no conflito Leste/Oeste, combatendo o Comunismo. Terá esquecido os ensinamentos de Cristo: «A César o que é de César. O meu reino não é deste mundo». O seu papel na evolução política da Polónia, a sua terra natal, poderá fazer dele um patriota, mas dificilmente um santo.
Terá cometido repetidos pecados por omissão. O papa não foi capaz combater eficazmente a pedofilia no seio da Igreja. Os escândalos sucederam-se, um pouco por todo o mundo. Há quem diga que a pedofilia na Igreja Católica é tão antiga como o celibato obrigatório dos padres. A interdição do casamento impede ou, pelo menos, dificulta o exercício duma atividade sexual saudável. Poderá eventualmente contribuir para chamar para o sacerdócio jovens com dificuldades em assumir vidas sexuais normais.
O papa é o Chefe de Estado do Vaticano. Dirige uma organização multinacional que conta com duas centenas de cardeais, um pouco mais de cinco mil bispos, quatro centenas de milhar de sacerdotes e um número apreciável de freiras e frades. Os fiéis são cerca de 1,2 biliões.
Escrevi, não há muito tempo, que um anjo só por milagre acederia ao Poder. Se lá chegasse, apesar da intervenção divina, ficaria depressa com as asas chamuscadas. O Poder corrompe e obriga à tomada de decisões dificilmente compatíveis com a moral. 
A canonização destes dois papas parece traduzir a submissão da Igreja Católica ao marketing político. É a política espetáculo ou, se preferirem, o apostolado espetáculo. Dois papas a canonizarem outros dois garantem o sucesso mediático dum evento que será transmitido pelas televisões de todo o mundo. 

domingo, 20 de abril de 2014

               A MINHA EXPERIÊNCIA COMO MÉDICO DO
                     NAVIO HOSPITAL GIL EANNES



                                  V
                         MÉDICOS  A BORDO  
      
Aqui está a equipa médica do Gil Eannes, em 1970. Não éramos muitos, como veem: eu, do Dr. Barros Pereira e os enfermeiros Matos e Bichão.



Ao centro estão o Capitão de Porto nos Mares da Terra Nova e Gronelândia, comandante Gaspar e o capelão, padre Magalhães.
Eis a equipa de assistência completa:



Quando embarcámos, éramos médicos jovens. Eu não tinha prática de Medicina não tutelada. Nenhum de nós tinha experiência cirúrgica. O conhecido bloco operatório do navio não podia ser rentabilizado. Não havia técnicos de Fisioterapia nem quem soubesse fazer análises clínicas. Vivíamos os últimos anos da pesca à linha e o Grémio dos Armadores da Pesca do Bacalhau começara a desinvestir na assistência.


Foram-nos buscar ao Exército porque éramos os médicos mais baratos (e também mais inexperientes) que havia no mercado. Transferiram-nos para a Reserva Naval e deixaram-nos estar dois anos no posto de Aspirante, para nos pagarem menos.
Cada navio de pesca tinha um enfermeiro a bordo. Era o nosso interlocutor privilegiado. Havia uma pequena farmácia em cada embarcação.
Quando aportávamos a San Jones, os doentes vinham à consulta ao navio. No alto mar, quando as embarcações estavam próximas, faziam o mesmo.


Se algum doente apresentava dificuldades de mobilização, éramos nós que o visitávamos.
          


Como o estado do tempo variava, certa vez, após uma consulta de meia hora, tive de aguardar três dias num navio de pesca antes de haver condições para regressar com segurança ao Gil Eannes.


Existia uma biblioteca a bordo, com alguns livros médicos. Davam jeito essencialmente para quando ocorriam situações a que não estávamos habituados.
A dificuldade em tratar doentes que se encontravam a muitas milhas de distância tem hoje, adaptada aos tempos modernos e às técnicas de imagem, um nome sonoro: tele-medicina. Fomos, de facto, pioneiros nessa área. Tínhamos de avaliar a situação clínica através das descrições que os enfermeiros faziam ao radio-telefone. Conversávamos e tentávamos chegar a um diagnóstico.


Tratando-se duma população geralmente jovem, a ameaça mais temida para a vida era a apendicite aguda. É, como se sabe, uma situação que se pode deteriorar em poucas horas. Sendo impensável perder vidas, desde que o pudéssemos evitar, sentíamos a obrigação de interromper a faina da pesca, de que dependia o sustento de toda aquela gente, apenas quando fosse realmente necessário. Percebíamos de algum modo que o erro mais grave, logo a seguir a deixar perigar o doente, era desencadear um alarme falso e fazer arribar um navio desnecessariamente.


Conversávamos repetidamente com os enfermeiros, procurando seguir com intervalos curtos a evolução dos quadros clínicos.
Inventei alguns truques. Distribuí por todos os navios um desenho com o abdómen do doente dividido em quadrículas, sinalizadas como no jogo da Batalha Naval. Era assim mais fácil entender o ponto exato das queixas dolorosas. «A 3» era a fossa ilíaca direita…
A minha vida de médico dos pescadores do bacalhau não se limitou ao Gil Eannes. Passei um mês em 1970 e dois em 1971 em navios de linha. Cheguei a estar 70 dias sem pôr um pé em terra. O isolamento trazia algumas vantagens: não vinha ninguém trazer a gripe para bordo.
O trabalho era pouco e aborrecia-me. Ocupava o tempo estudando, lendo, pescando (nas poucas vezes em que calhava) ou jogando às cartas. Na Gronelândia, no verão era sempre dia. Pelas 22.30 corria as cortinas e acendia a luz eléctrica, para fingir que era noite. 
A patologia com que deparávamos não nos provocava grandes dores de cabeça. Com a humidade, era comum o reumatismo. Os horários irregulares da alimentação tornavam frequentes as doenças do aparelho digestivo. Eram frequentes os panarícios, consequentes a picadas de anzol e tivemos de enfrentar casos sucessivos de escabiose, que a confinação dos espaços para dormida e a limitação das condições de higiene tornavam quase epidémica. Para que fosse disponibilizada a um doente água suficiente para um banho completo, era precisa uma recomendação médica. Havia também alguma patologia respiratória, geralmente benigna. Consta que, anos atrás, antes da existência das câmaras frigoríficas, era comum o escorbuto.
Raramente tivemos mais de 20 das camas da enfermaria ocupadas por doentes internados. 
Durante os mais de doze meses em que andei embarcado, perdemos três navios. Morreram sete homens nos naufrágios. Pessoalmente, não passei por qualquer situação de perigo, apesar de ter havido um pequeno incêndio no Gil Eannes. O meu colega e amigo Manuel Barros Pereira foi menos afortunado. Desenvolveu uma apendicite aguda. Receoso da pouca experiência dos colegas que o governo dinamarquês colocava em Godthàb, passou algumas horas à entrada do porto da capital da Gronelândia, enquanto se enchia de antibióticos, a ver se a crise aguda passava e se punha em estado de navegar para St. John`s. Por fim lá seguiu, mas o Gil Eannes deparou com um banco de gelo pela frente e foi forçado a contorná-lo.



Passadas 24 horas, progredira o equivalente a duas horas de viagem normal. Eu estava no Neptuno. Trocávamos mensagens jocosas pela fonia, mas estávamos preocupados. Felizmente, tudo correu bem. O meu colega foi operado por um cirurgião canadiano e veio fazer o período pós-operatório para o mar. Decorreram mais de quarenta anos e terminou há muito a guerra colonial que obrigava os jovens portugueses a passarem dois anos em missão de combate em algum dos recantos do Império. 


   De certo modo, fui afortunado. Ninguém me deu tiros e, embora tivesse andado embarcado durante mais de 370 dias, trabalhei em Lisboa durante dois dos quatro semestres que durou a minha comissão. Será difícil esquecer San Jones, os Bancos da Terra Nova e os mares da Gronelândia. Naveguei algumas vezes acima do Círculo Polar Árctico.
   Ironicamente, no processo de selecção dos candidatos que pretendiam trabalhar na vizinhança dos icebergs, contou a elevada classificação que obtive no curso de Oficiais Milicianos Médicos em... Medicina Tropical. 




Fontes:
Amador, Licínio Ferreira – O Gil Eanes. Internet, dezembro 2013.
BERRUE, Pierre. Navires-hôpitaux des Œuvres de Mer de 1896 à 1939. Internet, 2009.
Gil Eannes. Câmara Municipal de Viana do Castelo, Comissão Especial pró Gil Eannes, 1997.
Klein, Randall T. Jr. The codfish industry in northern Portugal. United States Deferment of the Interior. Fish and Wildlife Service. Washingt D. C. February 1950.
OCEANOS – Terra Nova – A epopeia do bacalhau. Nº 45 – Janeiro/março 2001. 


Também publicado no blogue historinhasdemedicina.